“instante do passarinho
fui olhar
fiquei sozinho”
Ricardo Silvestrin
Já passou o Natal, pai! E saiba que queria que fosse exatamente assim: depressa! Bem como o término desse ano.
Como se esquece um ano inteiro? Dá para tirar aquele dia do calendário?
Não tem sido dias fáceis, bem como você previa. E de algum modo tenho repetido seus padrões, com a consciência que me cabe e me faz perceber que assim o faço por honra a você, mas por honra a mim mesma, escolho quebrá-los daqui para a frente.
Outro dia, na sua casa, um passarinho não parava de entrar na cozinha. Passava pelo vitrô e se posicionava sobre o balcão. Saia de novo, voltava e pairava sobre o micro-ondas. Dava uma volta e pousava na pia.
Era você, pai? De alguma forma, mandando um sinal? Dizendo que estava ali?
Em quarenta e sete anos, eu nunca tinha visto algo assim. Apesar dos inúmeros passarinhos no quintal, nunca nenhum tinha tido tal ousadia. Depois de muitas voltas e pousos sobre a cozinha, ele foi para a sala e voou para a parte superior da casa.
Eu fui atrás, curiosa e ao mesmo tempo intrigada.
“Será que esse passarinho vai para o quarto do meu pai?”
E ele sumiu, mesmo com todas as portas e janelas fechadas.
“Onde foi que esse passarinho se escondeu? Não era de verdade?”
Não o encontrei mais, pai… assim como você.
“Onde você está? Por que não tem mais me visitado em meus sonhos?”
Abri todas as portas e janelas, para que o passarinho encontrasse um meio de ir embora, de onde quer que pudesse ter se escondido. A gata estava lá e poderia acabar com aquele passeio inusitado, de forma nada amigável.
Tem sido dias estranhos, pai, de saudade e de tantas confusões que se fizeram depois. Na verdade, as desordens sempre estiveram ali, mas era você quem as administrava. Isso só me fez ver ainda mais o tamanho de sua força. Não sei como conseguiu, mas o reverencio por isso. Por muito menos, eu teria ido embora. Você não foi, pai! Você foi depois.
Acho que minha mãe gostou do Natal, ao menos um pouco e isso me bastou. Só queria que o dia passasse…, que os dias passassem…, que o fim de ano passe, quiçá, que a vida passe. Na fé de um mundo melhor do outro lado e de um cansaço de alma, às vezes me pego pensando nisso. Não me sinto deprimida, nem fraca, não é isso, não se preocupe, continuo forte, só com uma vontade de algo diferente disso aqui.
A Copa também já acabou e você não deve se surpreender com o fato de que não vi jogo algum e muito menos torci para o Brasil. Na percepção clara da Política do Pão e Circo, torci por qualquer país de população dotada de ética, civilidade e com o devido merecimento da distração. Não é o nosso caso, Pai! Até para a alienação é preciso mérito, ao menos para um alienado consciente! O resto jamais compreenderia o nível de quem viveu uma Copa num país devidamente merecedor.
Eu sei, não estou muito positiva hoje, mas a vida é assim mesmo: tem dias bons e tem dias ruins, na eterna dança onde a gente se equilibra como pode e o gingado melhora com o tempo.
Um passarinho me contou que você já está melhor. Um dia iremos nos encontrar novamente. Até lá, se comporte! Eu estou tentando, mas não tenho tido lá muito sucesso, estou igual a você!
Barbaridade…
Soube que o passarinho voltou para a cozinha naquela mesma tarde. Entrou e saiu várias vezes pelo vitrô.
É isso aí, pai!
A casa é sua!