“Ser, às vezes sangra.” (Clarice Lispector)
Décadas de luta resistindo às tantas formas de submissão e abnegação. Cansaço, incompreensão, injustiças e solidão, me fiz dona de mim. Para as humilhações e assédios, os sorrisos forçados e sem graça.
“Desempregada, não pode”.
Mãe de filho sem pai, profissional, dona de casa.
“Mantenha-se bonita”, “Não falte ao trabalho”, “Você tem com quem deixar seu filho, se ele ficar doente?”.
Filha do patriarcado.
“Seja magra”, “Tenha cabelos longos”, “Faça as unhas”, “Ginástica”, “Sorria”. “Vista-se bem, não mostre muito, mas mostre para mim”.
Filha da Geração X: estudei, trabalhei, cuidei da casa e do meu filho, pouco de mim. Dei conta de tudo. “Meu Deus, como foi possível?”. Enquanto eu me desdobrava, era mal falada por ser mãe solteira.
Onde estava o pai do meu filho? Ah, sim, na balada, curtindo a vida. Culpando a mim e a minha família por sua ausência na vida de meu filho. Sim, meu filho! Da filha do patriarcado.
Assediada quase sempre e tapando o sol com a peneira, para não perder o pão de cada dia. As poucas horas de sono, emoções reprimidas, falta de compreensão. Sozinha no mundo cão.
Filha do patriarcado.
“Estude”, “Trabalhe!”, “Não falte no serviço!”, “Tenha libido!”, “Cuide de seu marido!”, “Cuide da casa!”, “Você está cansada? Não pode!”, “Desarrumada? Assim homem não gosta!”, “Seja meiga!”.
Energia masculina imposta, energia feminina esquecida. Onde ficou o misticismo, o sexto sentido e a fé? Adormecidos enquanto eu cumpria as tarefas de toda uma vida.
No fim de uma era, rompo os tempos de tantas batalhas, olhando para mim mesma: o que você quer agora, filha do patriarcado? Ser filha de mim!
Na liberdade e mérito de quem se formou, construiu uma carreira, uma casa, um filho, uma vida, num corpo e mente cansados, que agora escolhem desacelerar:
– Vou é cuidar de mim!
A voz feminina da ancestralidade sussurra: “Não pense, sinta!”, “Não se preocupe, confia!”, “Dança, menina!”, “Ouça a sua voz interior!”, “Liberte-se do que não é você!”, “Não é preciso mais lutar contra os padrões que um a um, desmoronam.”
As lutas das próximas gerações serão outras, num patamar mais digno, evoluído, edificado também por todas as filhas do patriarcado através dos tempos.
“Segue, mulher: doce, calma, serena, deixa a força e o perfeccionismo de lado, segue suas vontades, seu corpo, seu gingado. Solte seu andar, o respirar, o olhar. Enfeite seu cabelo com uma flor!”
Fiz parte da história, de uma luta de milênios, injusta, desequilibrada e que a todos afeta, homens e mulheres doentes pela repressão de um mundo patriarcal.
Quanto tempo ainda para o despertar de cada uma de nós?
Através de mim e das minhas escolhas, me transformo e me liberto! Ouço e sigo as minhas vontades! Dona de mim! Na certeza da construção, do mérito e da direção intuída!
Sigo na leveza da transformação, nos movimentos de uma dança, no sopro de uma brisa, na água do mar!
“Vai menina, segue no fluxo da vida, que não para de pulsar, escolhe a si mesma.”
Vivo, danço, respiro, espero, acredito!
Agora, filha de mim!