Escafandro é o nome que se dá para o antigo traje de mergulho, utilizado até a década de quarenta, e que chegava a pesar mais de cem quilos. A sua conexão com a delicada borboleta é a sensibilidade de quem sentiu o próprio corpo como um escafandro, somado ao desejo de dele se libertar, da mesma forma que uma borboleta se liberta de seu casulo.
O francês Jean-Dominique Bauby não é apenas o autor deste livro, mas antes, o seu real protagonista. Aos quarenta e três anos de idade, o então produtor da revista Elle, sofre um derrame, que transforma a sua vida de galã bem-sucedido e “bom vivant”, na vida de um homem sem qualquer movimento físico, além das piscadas de seu olho esquerdo. Acometido pela Síndrome do Encarceramento, logo após o AVC, o filme se inicia com a perspectiva do olhar de Jean-Dominique, quando enfrenta pela primeira vez sua nova realidade.
Num roteiro muito bem escrito, ainda que longo, o mesmo desenrola com perfeição a agonia vivida pelo protagonista, tanto da descoberta de sua maior tragédia, quanto de tudo o que se passa a partir dali.
Pior do que um corpo são em uma mente doente é uma mente saudável em um corpo inválido. A ignorância da loucura, ainda pode ser capaz de proporcionar o esquecimento e as incertezas de uma mente confusa. Mas uma perfeita consciência em um corpo que não funciona é a prisão de tudo que se poderia ser.
Jean-Dominique tinha tudo: vida, energia, dinheiro, sucesso e o grande amor de sua vida, além da ex-mulher e três filhos. Intencionava naquele momento escrever um livro sobre a vingança feminina. No entanto, tudo o que possuía perdeu o sentido, uma vez que não podia mais ser usufruído por ele. Só o que lhe restava era o movimento do olho esquerdo e a presença das pessoas que se importavam com ele.
Através da ajuda de sua terapeuta, Bauby começa a se comunicar lentamente, como se soletrasse através dos olhos. Se assistir ao filme já transmite a agonia e desespero da falta de comunicação, seu diretor, Julian Schnabel, conseguiu, com maestria, instigar o telespectador à reflexões profundas sobre a prisão de um homem em seu próprio corpo.
O protagonista, a meu ver, ainda teve a sorte de ser muito bem atendido em um hospital naval à beira-mar francesa, por pessoas que realmente se importavam com ele. Mesmo com um tratamento de alta qualidade, é possível se sentir em sua pele, e logo em seguida, querer fugir dela.
Um homem inteligente, sensível e profundo, que reflete o tempo todo a sua própria condição. Olha em uma mosca ou em uma borboleta, motivos de contemplação e reflexão, mas sem a mínima possibilidade de expressar o que pensa e o que sente.
Em dado momento da narrativa, naturalmente Jean-Dominique revela o desejo de morte. Mas transforma sua auto piedade em energia de vida, materializando a ideia de descrever sua tortura e novas perspectivas em um livro.
Mais do que uma lição de vida, a eterna reflexão sobre o que se tem e o que se faz com o que se tem. Este filme me fez lembrar de uma pequena oração ensinada às crianças “lobinhos” no Escotismo: “Uns tem, mas não podem. Outros podem, mas não tem. Nós que temos e podemos, agradecemos ao Senhor! ”. Poucos são “os que tem” e “os que podem”. E raros, os que não tem, não podem e ainda assim se sobressaem através de uma extrema superação.
Somos uma sociedade de seres humanos, onde cada qual possui uma complexidade única. Não é possível transpor a vida e força de um ser em outro. E por este mesmo motivo, histórias como esta se tornam livros, filmes e inesquecíveis lições.
A tragédia é algo que todos evitamos. Fugimos da dor, tal qual o diabo foge da cruz. Mas é a dor que fortalece e nos permite acessar o melhor que se é, ainda que não se conheça.
É a partir do sofrimento que se torna o melhor que se pode ser.