“Os covardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez.”
William Shakespeare
É uma longa história, pai. E como todas elas, tem partes boas e ruins, mas a melhor é sempre aquela que a gente pode aprender com ela.
Depois que você se foi, a dor foi tão grande que eu só queria fugir do que ficou latejando em mim. Tomei a sua morte como impulso para a vida. Sabe aquele curso que há anos eu queria fazer? Então… E aquela viagem cara, top, para o Nordeste? Também! Além disso, fiz duas cirurgias que constavam em aberto na minha lista de auto cuidado. Vontades deixadas de lado, fiz tudo de uma vez! Investi em mim!
Quer saber? Acertei em cheio! Encontrei no sonhado curso o encantamento que há anos não sentia. Achei que nem tinha mais essa capacidade. Além de aprender e me emocionar profundamente em tantos sentidos, relembrei da sensação única de estar entre os meus, dos que comigo se parecem: raro! Ainda estou alimentando a minha alma com isso.
Sobre a viagem, posso dizer que estive no paraíso e o melhor foi quando andei doze quilômetros de bicicleta na praia e bati aquele papo sério com você. Eu sei, eu sei… Eu chorei, mas não foi mi mi mi. Honrei sua ausência com vida, pai! É isso que escolhi. Vou viver o que sentir vontade. Chega de perder tempo. Chega de perder vida!
Quanto às cirurgias, aí vem a parte ruim. Uma delas me causou uma infecção fortíssima e ontem de madrugada , me peguei no atendimento público de saúde, sozinha, deitada num banco do lado de fora, com frio, porque era o único lugar onde poderia me deitar. Sim, e o plano de saúde serve para que? Você deve estar se perguntando. Nem queira saber, essa é outra história. E eu tinha tantas lágrimas pelo rosto, que quando me perguntaram o nível da dor e eu respondi 9, a assistente já tinha anotado 10 em seu formulário.
E quem disse que as lágrimas eram por causa da infecção? Ninguém perguntou! Estava doendo horrores, mas meu choro era outro. Chorei porque me vi em seu lugar, pai! Nas tantas vezes assim, antes de você se for. Eu não movia um dedo sequer, não piscava. Estava imóvel, absorta em minhas lembranças. Sentia as lágrimas correndo por dentro e por fora, enquanto alguns me olhavam com pena, mas era como se eu nem estivesse ali.
Com uma dor que não me permitia ficar em pé ou sentada, minha alma revivia os momentos dos quais fugi por tanto tempo. Senti na pele a dor no corpo, que parece chamar a morte, sem qualquer atendimento apropriado, nem para o físico, nem para a alma.
Como é que se morre, pai?
Me coloquei no seu lugar por todos aqueles instantes e senti a solidão de quando se vê a hora chegar. Não deve ser fácil, mas também imaginei que se fosse naquele momento, poderia estar com você outra vez, rindo numa afinidade única.
Será que é assim? Senti a leveza de poder me libertar das tantas dores dessa vida, das tantas decepções. Esse mundo tá virado demais. E pior: a gente se transforma em outra coisa para sobreviver, se defender e seguir em frente. Daí onde você está, é possível esquecer quem os decepcionou, pai? Deve ser bom.
Saiba que minha mãe está melhor, à duras penas, aos trancos e barrancos, mas é como ela pode. Não fique triste se ela não falar no seu nome. Às vezes a dor é tanta, que nem se consegue olhar para as próprias feridas. É isso, pai! Amor sempre tem, mas cada um dá e lida de um de jeito.
Eu vou lidar vivendo, trabalhando e realizando meus sonhos. Sinta orgulho de mim! E pode rir das trapalhadas também, daquilo que não se escreve. Ou ao menos, não se publica!
O Natal está chegando e espero que possa ser como no meu aniversário, que caiu numa segunda feira e eu fingi que nem aconteceu, para poder ignorar o fato, de que foi o primeiro sem você. Não vai ter graça, pai! Quem vai debochar dos presentes debaixo da árvore de Natal e experimentar o que ganha na frente de todo mundo? Sinto saudades de sua presença marcante. E de quem eu ainda podia ser com você aqui.
E por tudo isso e tanto mais, ontem eu vi a morte com bons olhos. Não tenho pressa, pai! Mas quando acontecer, esteja lá: me esperando com aquela risadinha de canto! Vai anotando suas percepções para tirar sarro depois. Não esqueça de nada! Me lembre de quem eu sou, de onde eu vim e vamos juntos para sabe se lá onde eu deverei ir depois.
Num misto de amadurecimento, força e dor: eu cresci, pai! E vou continuar crescendo! Agora sem você por perto, mas vivo em mim, nas minhas histórias e em quem eu me tornei.
Ê mundão…
Esqueci da Copa! Pqp…, tá um saco! Não tem ninguém tendo chiliques no meio da sala.
Saudades que não acaba.
Se comporte!