Naquele dia, eu não queria ter ido ao trabalho. Era mais uma manhã após uma noite insone. Dias e noites consecutivas de um cansaço que me tiravam a vida. Eu me sentia miserável por dentro.
Como tudo na vida uma hora faz sentido, eu sabia que alguma lição haveria de vir com aqueles dias.
Eu estava cansada das dores escondidas. E quando estava saindo, meu filho me disse: “Um morador de rua me pediu uma meia. E eu queria levar um cobertor pra ele também”. Eu questionei se ele levaria só isso e então ele me mostrou uma sacola, onde já havia colocado uma calça, uma blusa, frutas e pães.
Eu me senti tão tocada por aquelas breves informações, que eu queria poder parar o tempo para entender: “Como aquele morador de rua te pediu um par de meias? Como foi isso? Ele te parou na rua do nada e pediu? Como foi? Como ele sabia que você se importaria?”.
Na rua se pede dinheiro, moedas, comida, cigarro e bebidas, mas eu nunca tinha ouvido sobre um par de meias. E me lembrei dos meus próprios pés, quando gelados, que me tiram a paz e o sono, me tornando apenas um corpo frio e desconfortável. Como seria, na rua, não ter um par de meias numa noite fria?
Pensei naquela que acredito ser a pior dor de todas: a fome. Uma dor que debilita primeiro o corpo, em seguida a mente e por último a alma. Dor que moradores de rua também vivenciam.
Tantas coisas passaram pela minha cabeça naqueles poucos minutos entre a minha ida ao trabalho e a saída do meu filho até o destino daquele dia, onde no meio do caminho se encontraria com o morador de rua para entregar o par de meias prometido.
Quem faria isso no dia seguinte? Meu filho faria. Mas como o morador de rua poderia saber disso?
Eu passei o dia no trabalho com a sensação de estar no lugar errado e vivendo uma vida errada. Na correria do meu dia-a-dia, não havia espaço nem para saciar as minhas dúvidas do momento, e menos ainda para ver a beleza daquele reencontro: tão raro, espontâneo, profundo, anônimo e indiferente na sociedade que habito.
Naquela mesma semana, um cachorro de rua me presenteou por três dias seguidos na entrada de meu trabalho. E por três vezes seguidas pude dar meu pão para que ele se alimentasse. Seus olhos famintos e agradecidos me permitiam acreditar que havia feito algo verdadeiramente humano em todo o meu dia.
Porque apesar de não ter o corpo debilitado pelos pés gelados como o morador de rua, ou pela fome de tantos, que me pesam a alma, meu espírito parecia estar debilitado por um tempo.
A autoconfiança havia me deixado, dando lugar às mágoas, saudades e tristezas. Dias que felizmente se foram, mas que eu não me esqueci.
Sinto saudades do meu filho por ele não estar aqui. E imagino se algum dia puder reconhecer o morador de rua com suas roupas, numa lembrança viva de uma de suas mais fortes e importantes características: a solidariedade.
Uma atitude capaz de aquecer os pés frios de um morador de rua. E uma alma que estava vazia. A minha.