Após oito meses de trabalho para o diretor alemão que havia me contratado como sua secretária trilíngue, eu tive que me preparar psicologicamente para a sua substituição. Não foi tarefa fácil, nem pra mim, nem pros outros cerca de 350 funcionários da empresa. Isto porque nosso diretor era simplesmente um “Gentleman”. No alto de sua sabedoria e experiência de vida de 74 anos, o diretor tinha conquistado a confiança e simpatia de todos. E ficamos realmente apreensivos. Sempre soube que gostar e admirar um chefe de verdade era algo raro, mas neste caso, nem era só eu, mas uma empresa inteira.
O diretor interino era calmo, falava baixo e lentamente. Tinha o hábito de andar pela fábrica diariamente, observava o trabalho de cada funcionário, sempre disposto a conversar com quem quer que fosse e também a ouvir sobre qualquer tipo de problema ou reclamação. O Gentleman tinha lá sua especial simplicidade. Apesar de sua fina educação e riquezas cultural e intelectual, o velho homem não perdeu sua doçura em nenhum aspecto de sua personalidade ou caráter.
Como sua secretária, sempre tive minha mesa ao lado de sua sala. Podia observá-lo o dia todo. Não que fizesse isso premeditadamente, mas era parte do meu trabalho estar ali. Prestar atenção aos fatos era uma oportunidade inenarrável. O Gentleman, apesar de alemão, gostava mais de decisões em cima da hora. Não marcava seus compromissos com grande antecedência. Era calmo e sinceramente gentil com todos que chegavam à ele. Eu costumava dizer que até mesmo bravo, ele era bonzinho.
Certa vez ele me convidou para ver um filme às 17 horas em sua sala. Para minha surpresa absoluta, ele tinha preparado a mesa com café e chocolates para assistirmos ao curta juntos. Uma preciosa raridade: filme feito por seu pai, de quando ele, meu chefe, ainda era um bebê no seu país de origem.
O Gentleman costumava me contar um pouco de suas histórias. Uma vez na Alemanha, após a segunda guerra mundial, contou que foi obrigado a demitir mais de duas mil pessoas. O Gentleman derrubou algumas lágrimas. Mas não gostava de chorar na frente dos outros. Sempre que isto acontecia, ele dizia: “Já está bom, né, Ana Carolina? Já estamos terminados.” Era hora de eu sair de cena, fazendo de conta que não havia visto seu choro. Muito mais do que sua comoção, eu sempre olhei fundo em seus olhos, tentando entender a profundidade de sua alma. Nunca conheci alguém como ele.
Como a despedida foi longa, já que novo e velho diretor atuaram juntos por algum tempo, até achei que foi fácil aceitar a ideia de sua ausência.
Por um mês o velho diretor mudou de sala, cedendo a mesma ao novo. O novo diretor era enorme, bem mais novo e italiano nascido na Alemanha. Se o velho diretor falava português com sotaque alemão, este falava com sotaque italiano. Apesar do alemão perfeito, parecia que sua alma vinha mesmo importada da Itália.
O novo diretor se mostrou bem mais barulhento. Se o Gentleman era delicado em seus movimentos, o novo não tinha como esconder seu tamanho e peso. A cada movimento, falar ou andar, se percebe um movimento e som mais bruscos, digno de alguém de peso. E nem o estou chamando de gordo, porque não é o caso, mas no alto de seus 1,89 m, creio que não há espaço para muita delicadeza.
Teve gente que ficou apreensiva, não se acostumou de imediato com a troca de diretoria e com a nova forma de trabalho que veio com ela. O novo diretor era mais rápido, prático e muito, muito objetivo. Percebi na posição que minha mesa me proporciona as diferenças não tão sutis. O novo era realmente diferente. Melhor? Pior? Percebi que esta não era a questão. O velho tinha dado o melhor de si e de toda experiência que tinha. O novo, apesar de temido, tinha grandes qualidades a oferecer também.
No final do ano, vi que a gentileza de uma pessoa não está só em seus gestos, no modo de ser, ou ainda no tom de voz, baixa alemã ou alta italiana, mas no ato que vem do interior de uma pessoa.
Num momento bem difícil da minha vida, pude contar com o mais compreensivo apoio de que precisava em meu trabalho para atravessar o problema de ordem pessoal.
Se de um lado me surpreendi com a delicadeza do velho alemão, também posso afirmar que me surpreendi ainda mais com a sensibilidade italiana. E que mais uma vez: pior? Melhor? Não vem ao caso. Mas sim, o melhor que cada um tem a oferecer. Inclusive eu. Porque no fim das contas, o que conta não é a nacionalidade, idade ou experiência de vida, mas as qualidades que vem da alma.
Sorte de quem tem! E sorte de quem pode conviver com elas.
Eu tive sorte em dobro.