Há muitos anos atrás eu conheci um homem. Na verdade ele já era um conhecido. Mesmo assim, foi uma pessoa que eu demorei a conhecer de verdade. Como era criança, foi necessário eu crescer e ter os meus próprios conceitos e experiências para avaliar aquele senhor. Tinha dele certo medo, pois ele era bravo e estava sempre trabalhando. Com o passar dos anos fui obrigada a falar com ele, principalmente nas horas em que dele precisei. A convivência foi difícil, porque os problemas foram muitos. Apesar de ver claro em minha personalidade muitos traços desse senhor, também vejo várias opiniões e comportamentos que se divergem.
Meu pai, o senhor a quem me refiro, nunca foi uma pessoa fácil. Pelo menos lá em casa… Endurecido pela vida extremamente difícil que teve, até o encorajei a escrever um livro contando sua história. Ele me respondeu com sua típica sinceridade que sempre arranca risadas da família: “Eu não…, ninguém vai acreditar…”. Acho que ele tem razão; as histórias são tão absurdas que ninguém acreditaria. Eu até hoje, tem coisas em que ainda não acredito. Mesmo tendo sido testemunha…
Família a gente não escolhe; aceita. Tem problemas como todas têm: umas mais, outras menos; só muda de endereço. As histórias da minha família não dariam um livro, mas no mínimo uma trilogia. E venderia horrores… Mas não escrevo, senão serei um membro a menos.
Já na terceira idade, meu pai não mudou muita coisa desde que eu era criança. Apesar de sua rudeza, seus pequenos olhos azuis sempre foram doces. Mesmo quando está bravo, pode se ver em seus olhos a dor que sente com sua própria revolta. Ele não aceita muito bem a falha dos outros. Compreensível para alguém que é tão correto. Mas tem uma coisa sim em que ele mudou muito. Se quando criança ele vivia reclamando dos gatos de rua que eu vivia levando pra casa, semana após semana, hoje em dia é ele quem arruma seus próprios gatos. Gosto de pensar que ele faz isso pensando em mim. Não sei se é isso, mas prefiro acreditar que sim.
Amor, cada um expressa de uma forma. Há os que amam com possessividade, outros com ciúmes e até os que reconhecem na agressividade um tipo de amor. Diz a psicologia, que tudo depende do que aprendemos na infância.
Não tenho muitas memórias do meu tempo de criança. Diz meu psicanalista que tenho bloqueio. Mas isso já é outra história. Só sei que o meu conceito de amor também é diferente. Cada um busca uma forma de amor, porque no fundo, independente de como for, todos nós precisamos amar; não é uma opção apenas, mas uma necessidade. Se amar dói, não amar mata. E mata devagar.
Lá em casa, cada um ama de um jeito. Um jeito mais torto do que o outro. Importante é reconhecer que ele está lá: o amor que a gente precisa.
Meu pai nunca foi de palavras doces. É tão duro e sincero que muitas vezes chega a ser grosso. Mas é uma grosseria tão única que a gente ri. Certa vez meu irmão mais velho ficou chateado porque tinha ido pescar e em seguida ficou a espera da família pra fazer os peixes pra gente. Ninguém compareceu. Sabendo da decepção do meu irmão, meu pai falou bem alto: “Ninguém quer peixe…”. Aquilo foi de uma indelicadeza tão engraçada que virou jargão na família.
Pois é, aquele senhor de quem eu tinha medo na tenra idade hoje já diminuiu de tamanho e até baixou o tom de voz, anda mais calmo ultimamente. Eu, sua filha caçula, sou como ele muitas vezes reclamou, bem preguiçosa para certas coisas; uma delas para descascar laranjas. Mas como o senhor ranzinza sabe que eu amo laranja lima, ele mesmo, aos setenta e quatro anos idade, sobe no pé e descasca dezenas da fruta pra mim.
Eu não tenho um dicionário do amor para cada maneira de amar que existe, mas sei que essa é a expressão que meu pai usa para dizer “Eu te amo”!
E essa é a minha forma de responder ao meu descascador de laranjas. A lembrança mais doce que sempre levarei comigo. E não é da laranja.