Pela primeira vez na vida, senti a dor de uma unha encravada em um dos dedos da mão. Por duas semanas, não pude digitar com aquele dedo ou fazer qualquer movimento, que o tal logo latejava. E apesar de ser algo tão pequeno, me levou à algumas reflexões.
Nos acostumamos tanto com tudo o que temos, que simplesmente não registramos mais a benção que é estar vivo, com saúde, com os entes queridos bem, pelo fato de estarmos trabalhando, ainda que de segunda a segunda, cheios de cansaço, tendo uma casa para morar e alimentos para saciar a fome.
A unha encravada, apesar de pequena, me fez pensar nas pessoas que sentem outro tipo de dor e constantemente, quase que sem interrupção: os que tem diabetes, câncer, ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), Esclerose e tantas outras que limitam e ferem o corpo.
Minha unha encravada estava doendo, incomodando e me limitando em pequenas coisas, mas em algum momento iria passar. Já uma doença grave faz doer a alma, tira o vigor da vida e a esperança de um dia melhor. Tem gente que leva picada de agulha todos os dias, várias vezes por dia, vive em hospital, faz exames regularmente, não consegue comer ou dormir, não se movimenta ou não pode beber água. Morre um pouco a cada dia.
Não posso afirmar sobre o que é pior: a doença ou a fome. Sempre imaginei que a fome deveria ser a pior coisa que um ser humano poderia vivenciar, quando privado do mínimo necessário que precisa para sobreviver. Alguém que não tem como alimentar seu corpo, fica privado de todo o resto. E assim como a doença, também machuca o corpo e a alma.
Eu estava cansada pelo excesso de trabalho, profissional e doméstico e de algumas queixas corriqueiras de uma vida na cidade grande, mas a unha encravada não era nada, se comparada a dor de quem tem fome ou de quem perdeu a vivacidade de seu corpo.
A dor da minha unha encravada era só a minha consciência evidenciando, mais uma vez, a hipocrisia de ter tão pouco para reclamar e mesmo assim o fazê-lo constantemente. Felizmente as reflexões nos trazem, vez ou outra, a visão real sobre o mundo em que se vive e a própria sorte.
Nos acostumamos a olhar sempre para os que tem mais: a eterna verificação sobre a grama do vizinho estar mais verde ou não.
Enquanto pessoas continuam morrendo na Síria e refugiados passam por todo tipo de privação e humilhação, a dor latejante em meu dedo me incomodava. E o pus que ali se formava era tão perturbador quanto a verdade, de aquilo não tinha qualquer importância.
Apesar de todo cansaço físico e mental de uma vida cheia de estresse, das horas de vida perdidas no trânsito, das noites mal dormidas, a ansiedade compulsiva, a vida quase sedentária e a ausência de alegrias, a superficialidade de uma vida que segue no automático não era de se comparar com uma vida sofrida a partir da deterioração do corpo.
Vivemos sempre com pressa, cumprindo compromissos sem fim, contra um relógio que não para e um tempo que nunca basta, sofremos com a falta de vida, quando nos vemos desperdiçando as nossas com a garantia do sustento e com as tentativas de uma vida melhor.
Vivemos quase todos assim, correndo, reclamando, sem tempo e sem vida. E pior, sem consciência.
A dor física traz a dor da alma e as reflexões que nos tiram da superficialidade e ignorância.
A unha encravada ao menos me trazia um pouco de luz, gratidão e lamento pela desconexão com a vida. A chance de olhar para o que realmente vale a pena neste curto espaço de tempo chamado viver.
A unha encravada, que no fim, virou luz.