“Das habilidades que o mundo sabe,
essa ainda é a que faz melhor: dar voltas.”
(José Saramago)
Como eu me senti com a ameaça do Corona vírus? Com medo, como acredito que a maioria se sentiu. A pandemia se apresentou para mim num momento que eu estava prestes a mudar de cidade, depois de uma difícil escolha pessoal. Adiantei-me. Sair da maior cidade do Brasil rumo a uma cidade menor me pareceu bem apropriado.
Em poucos dias, tudo relacionado ao vírus se tornou regra nos noticiários. Enquanto a contrariedade com a política pública insensata só ampliou sua abrangência de discórdia e protestos de todas as formas.
Perdi o sono. Quando conseguia dormir, acordava assustada. Pressão no peito.
Medo do vírus, da pandemia? Medo de morrer sem atendimento, aparelho respiratório e ser enterrada às pressas, causando dor a minha família. Deve ser o que todos temem, não? Quem não deseja morrer dormindo em uma calma velhice?
Em pouco tempo, resolvi mudar o meu cenário. Me desliguei dos noticiários e das redes, de forma a ver o mínimo possível as informações acerca da pandemia. Se ia ficar de quarentena, por que não em boa companhia para mim e para meu filho? Adquiri um gato e foquei na arrumação do meu novo lar. Bem depois, vi que no Estados Unidos, muitas pessoas tiveram a mesma ideia, deixando um dos abrigos de animais absolutamente vazio.
As noites mal dormidas passaram e o medo diminuiu. Resolvi o meu problema? Talvez, já que o mal estava sendo o próprio medo. Lavo as mãos, mantenho a casa limpa, não recebo ninguém e não saio.
Mas espera aí…, eu estou no Brasil! E do contexto vigente aqui, não dá – nem pra esquecer, nem pra controlar! Só na cidade de São Paulo são mais de vinte e quatro mil moradores de rua. Metade da população brasileira não tem acesso a rede de esgoto e a renda per capita é de pouco mais de mil reais. Estamos falando de milhões de pessoas que ainda não tem acesso ao básico do básico, para uma vida digna em tempos normais. O que dirá em dias de pandemia? Sem falar no sistema de saúde, que naturalmente já não dá conta do recado.
Eu, supostamente, resolvi o meu problema. Mas concluo: e a grande parte das pessoas que não podem ir na fila do supermercado disputar o papel higiênico ou o álcool gel, porque mal tem para o próprio sustento em dias normais?
Estamos vivendo um momento único na história da humanidade. Um vírus que chegou transportado via aérea (literalmente) pela classe média e que espalhou para todas as camadas sociais. A mesma classe que trouxe o vírus para o Brasil e que a espalhou pelo mundo, pode bem se esconder em casa. Mas e os que estão abaixo dessa camada, na informalidade, no desemprego, nas filas de hospitais e benefícios do governo? Como ficam?
Tem gente preocupada que agora precisa limpar o banheiro, lavar a louça e não pode ir ao cabeleireiro toda semana, enquanto tantos que já tinham a constante preocupação se iam comer ou não, agora não sabem nem como lavar as mãos, pois não tem água e nem dinheiro para o álcool gel, que além de caro, também se tornou raro.
Há quem acredite que tudo isso tem um propósito maior, como a elevação do nível de consciência de toda a humanidade. Já não era sem tempo. Que nossos valores capitalistas e segregários, direcionados ao ego, materialismo e consumismo exacerbado buscando a ostentação e conforto individual insaciáveis, sejam questionados neste momento de luto, como nos lembra David Kessler , um grande especialista em luto _ “Sim, e estamos sentindo vários lutos diferentes. Estamos sentindo que o mundo mudou, e ele mudou mesmo. Sabemos que é temporários, mas o sentimento não é esse, e sabemos que as coisas vão ser diferentes. A perda da normalidade; o medo do estrago econômico; a perda de conexão. Isto está batendo, e estamos em luto. Não estamos acostumados a este tipo de luto coletivo no ar.”
Se o mundo se tornou globalizado, dividindo informações, conhecimento, tecnologia e produtos, agora também compartilhamos o mesmo vírus.!
“E agora, José?”
[1]Este desconforto que você está sentindo é luto.