A primeira vez em que estive com ele, tive a certeza de que se tratava de um artista. Um japonês de estilo único. Magro, de braços fortes, tem um dos cabelos compridos mais bonitos que já vi. E melhor do que em uma top model, seus fios se movimentam o tempo todo, mesmo que não esteja em uma passarela. Roupas justas, bota e muitos acessórios, como: pulseiras, alargadores, anéis e colar, perfeitamente combinando com sua pele e tatuagens. Não é para qualquer um. Ele é um designer de si mesmo.
Depois disso, é preciso estar muito atento para perceber todos os detalhes de seu pequeno salão. O chão com pisos variados, bem como a parede com diferentes texturas e quadros. Em cada canto uma decoração, que se mistura com outros estilos e no fim se encaixam perfeitamente sob qualquer olhar.
Não havia dúvida para mim, de que quem cuidava do meu cabelo era bem mais do que um bom cabeleireiro. Após eu insistir muito em minha pergunta a respeito, ele confessou que desenhava, mas que não havia alcançado êxito com a arte. Triste como qualquer artista, que não se realiza em seu próprio dom, embora ele manifeste a sua arte de outras tantas maneiras, mesmo que não o perceba.
Claro que com meu cabelo não seria diferente e por isso mesmo voltei àquele salão. Em pleno feriado de manhã, ele me atendeu com energia positiva, embora estivesse triste, por algo que vim a descobrir depois. Almas de artista são assim. Se reconhecem, se abrem entre si: para seus iguais, os que se expõem sem medo e sem pesar. Os que sofreram até aprender com a vida, a simples aceitação de si mesmo, através de toda sua intensidade e dor, expostos em forma de arte.
Enquanto abríamos a alma um ao outro, uma parte de sua vida me chegou com tanta naturalidade e conforto, que creio ter demorado a expressar o quanto me surpreendeu sua autenticidade. Numa sociedade habitada muito mais por hipócritas do que por pessoas de verdade, percebi que em toda minha vida, nunca havia ouvido tal frase: “Sou soropositivo”, enquanto continuava a lavar os meus cabelos e a falar livremente. Permiti que continuasse assim, enquanto minha mente processava, absorta, o porquê de minha tão profunda admiração.
Num mundo onde os gays têm que se esconder no armário, os negros se cuidarem e diferentes religiosos se calarem, imaginei a qual minoria o meu querido cabeleireiro pertencia. Não pelo número de soropositivos à minha volta, mas pelo número quase que inexistente, de pessoas que assumem tal condição e ainda de maneira natural e feliz.
Se num momento de dor, o que mais consola é ser ouvido e estar entre aqueles que passaram pela mesma dor, pensei no alívio que aquela informação deveria proporcionar aos que se escondem por trás de uma doença e suas dores.
Vivemos num mundo onde a maioria tenta nos obrigar a viver em seus moldes e modelos. A pressão é tamanha que nos rendemos sim: vestimos uma determinada roupa, consumimos determinados produtos, frequentamos certas escolas e nos comportamos a medida do aceitável, dentro do que nós mesmos conseguimos. Em um ponto ou outro, estamos sempre nos moldando à sociedade, para que nela possamos sobreviver e crescer.
Minha admiração foi tamanha, que demorou a ser processada. E apenas minutos depois, fui capaz de expressar o que refleti e senti. Foi algo além do saber de toda sua força e boa vibração para o dia-a-dia, mesmo sendo portador de tal síndrome, mas muito mais sobre sua coragem de ser quem se tornou em sua vida.
Ser quem se é, se expor, seja como for e seja quem for, num mundo de padrões ideais, é imensa libertação. Liberdade que a maioria desconhece, mas que mostra a verdadeira coragem de quem é dono de si mesmo.
Sob a possibilidade iminente de ser massacrado por uma sociedade cruel, meu cabeleireiro e artista é muito mais do que acredita ser.
Quem revela com naturalidade todas as suas marcas, corre grandes riscos. Mas a determinada altura da evolução, já se está em nível tão elevado, que sua liberdade não lhe permite que nenhuma pedra o alcance.
O tamanho e valor de um ser humano deveria ser medido justamente assim, pela forma como ele se apresenta e se mostra: sem máscaras, sem roupas, maquiagens ou qualquer disfarce. Mas os que costumam medir o tamanho dos outros, ainda estão muito aquém de sequer compreender este parágrafo ou história.
E eu, que não tenho máscaras para retirar, tiro e retiro então, mil vezes o meu chapéu.