Era fim de tarde de uma terça-feira supostamente comum, quando já de saída do trabalho, percebi que meu filho havia me ligado e deixado duas mensagens de voz. Algo incomum, mas bem menos incomum do que o que suas palavras diziam: “Mãe, não venha para casa. O prédio foi interditado e eu tive que sair às pressas, por risco de desabamento. Eu estou na casa da Thais”.
O recado era tão incomum e surpreendente, que eu ri e repeti para alguns colegas de trabalho à minha volta. Após o dobro de tempo para chegar no Morumbi, naquele dia, finalmente conversei com meu filho, para tentar compreender o que estava acontecendo. Como assim um prédio no Bairro Morumbi está prestes a desabar? E logo toda a imprensa estava lá, fazendo o seu sensacionalismo, neste caso tão apropriado e necessário.
Vínhamos de uma sequência de tragédias: o rompimento das barragens de Brumadinho e as centenas de mortes e desaparecidos até então, os meninos mortos no incêndio do Flamengo, as chuvas e vítimas no Rio de Janeiro. E agora eu e meu filho desabrigados?
Na verdade, eu não me sentia muito preocupada, pois já estava de mudança marcada para uma nova moradia, em poucas semanas. Embora todos os nossos pertences estivessem lá, eu me sentia feliz por não haver mortos e feridos. De todos os males, o pior deles ainda seria o menor; eu teria que comprar tudo de novo: móveis, eletrodomésticos, roupas, sapatos, remédios, comida etc. Ainda assim, não me parecia muita coisa.
O acontecimento me deixou desnorteada. Dormi sem a certeza do que faria no dia seguinte. Afinal, o que se faz no dia seguinte?
De manhã, com tênis emprestado, parti para a rua em frente ao condomínio, onde estavam os outros moradores, proprietários e jornalistas. Logo que cheguei, algumas lágrimas não contiveram sua força e caíram em meu rosto. Era dolorido assistir àqueles que lutaram a vida inteira pelo seu apartamento próprio e estavam ali, literalmente na sarjeta, à espera de informações e com a esperança de voltarem a seus lares como eram antes. Não ia acontecer.
O dia foi longo, intenso, tenso! E como nada na vida vem sem aprendizado, este dia veio com muitos.
Muitas pessoas tinham lágrimas nos olhos, um semblante triste e um olhar perdido para qualquer lugar. Enquanto alguns apenas aguardavam informação nas calçadas, outros se exaltavam, vez ou outra, com os repórteres ou com os curiosos, que teimavam em passar na rua estreita com seus carros, aumentando o cenário caótico que tinha se formado.
O condomínio em frente ao meu, liberou a área de cinema e salão de festas para que os moradores aguardassem, com água, banheiro e sombra. Dentre tantas tristezas, alguns atos de gentileza se sobressaíam. A proprietária de meu apartamento, com um bebê de colo, não demonstrou em absolutamente nenhum momento qualquer preocupação com sua perda, mas com a minha. Justo comigo, que não estava perdendo nada? E de tantos outros moradores que lamentavam a sua dor. No dia anterior, soube que ela ficou distribuindo leite às crianças vizinhas. Um dos moradores comprou coxinhas para os demais.
No período da tarde, conseguimos finalmente fazer uma reunião com o corpo dirigente do condomínio e com os “donos” da situação: a defesa civil, engenheiros da prefeitura, perito, advogado e seguradora. As notícias não eram tão ruins quanto tudo o que havia se falado até então. A construtora, detentora da causa do problema, continuava sem se manifestar, mas o condomínio estava segurado para situações como esta. E o prédio não iria desabar. Uma obra de sustentação poderia ser feita. E a vida talvez volte ao normal um dia. Será…? E quando?
No fim da tarde, todos os moradores de um dos prédios, o meu, tiveram 6 minutos para entrar em seus apartamentos e retirar os pertences pessoais, começando do térreo para o oitavo andar, sem elevador. O alívio veio em quatro malas e uma sacola. Após retornar ao apartamento de minha prima, meu filho me pede para levá-lo de volta ao condomínio, pois ajudaria os demais moradores com as malas e as escadas. E assim foi, com chuva e suor, até tarde da noite.
Dentre tantas informações, passos a se seguirem, processos burocráticos e obras, um grupo com os moradores e afins foi criado no WhatsApp. E tanto no meio da rua quanto no aplicativo, era possível perceber a falta de equilíbrio de algumas pessoas e no que isto pode se tornar num grupo maior. A falta de maturidade emocional e bom nível de consciência leva o ser humano a sofrer muito mais do que ele deveria, levando os demais à sua volta pelo mesmo caminho. Mas não vou além nesse pensamento. Cada um tem sua jornada de aprendizado, rumo à sua própria evolução. E o seu tempo.
Quatro dias se passaram. A construtora deu o ar da graça. E muito provavelmente, graças ao trabalho dos jornalistas e emissoras de rádio e TV. Eu e meu filho fomos reconhecidos, de costas, por uma colega de trabalho, num noticiário. Quem é que quer aparecer na TV numa situação dessas? Mas tinha gente que queria…
Saí do grupo devido a quantidade infindável de informações, especulações e indignação de seus membros, com toda razão. O condomínio foi construído em suas bases com material mais barato do que deveria ter sido. Troca-se um material aqui, outro ali, e agora vivemos a tragédia de perder os nossos lares, assim…, numa terça-feira qualquer, de um mês de fevereiro.
O ano de 2019 chegou com fama de vilão, sofrido. Mas o ano não tem nada a ver com isso. Sofremos a tragédia das mãos humanas, da falta de consciência e prudência. Do excesso de ganância, dos documentos forjados, licenças compradas, do “jeitinho brasileiro” que persiste em se manter vivo nessa sociedade, mesmo após as inúmeras lições que a vida vem trazendo.
Mariana não foi suficiente! Brumadinho ainda não foi o bastante. A Boate Kiss não foi muito. As chuvas do Rio de Janeiro. E os sonhos de jogadores de futebol dos meninos do Flamengo. O país das imprudências e das impunidades sem fim ou brandas demais. Onde estão os culpados e suas gordas contas bancárias? Os juízes que estão vendo tudo isso? Os que podem fazer alguma coisa e não fazem?
Nós, brasileiros, passamos por uma sofrida fase de transição, de alienados políticos à briguentos políticos. Já é uma evolução, lenta, mas saímos do lugar. Me pergunto, quando sairemos da posição de conformados e “não foi comigo mesmo…” àqueles que protestam nas ruas, como deveríamos ter feito igual aos suíços que protestaram na frente da sede europeia da Vale em seu país? Por nós, do outro lado do mundo… Mas “peraí”…! Não foi com eles, foi com a gente! Por que eles protestaram do lado de lá e ninguém do lado de cá?
Na última terça-feira, foi no meu condomínio. Numa sexta-feira, foram com os jovens do Flamengo. Também numa sexta, foi Brumadinho. Mariana foi numa quinta. A boate Kiss numa madrugada, de sábado para domingo.
No Brasil, infelizmente, todo dia pode ser dia… De tragédias, que não são gratuitas, mas consequências da imprudência e corrupção de muita gente.
Cabe a nós mudar a cultura e comportamento brasileiro, começando por nós mesmos. Ser exemplo, para cobrar exemplo. Ter atitude, para exigir atitude.
Só assim, algum dia, um dia qualquer, poderá ser realmente um dia qualquer…