Eu nunca esqueci o choro de meu avô. Foi ele, que sem saber, me mostrou pela primeira vez, o que era a dor da perda um filho. Eu tinha uns dez anos de idade. E a cena que eu vivi nunca mais saiu de minha memória.
Lembro bem, primeiro meu pai e minha mãe entrando na imensa sala de meus avós. Em seguida, entramos eu e minha irmã. No meio da sala estava o caixão. Na época em que a AIDS era uma doença nova e tão pouco conhecida, lá estava meu tio: morto por ela aos trinta e três anos de idade. Acho que foi o primeiro velório de minha vida.
Eu não faço ideia da roupa que eu usava naquele dia, nem em que carro viajamos até lá. Não sei qual era o dia da semana, nem em que série da escola eu estava. Não me lembro de quase nada. Mas teve coisas que eu nunca me esqueci.
Havia algumas pessoas espalhadas pela sala. Minha avó, sempre tão afetuosa com os netos, aquele dia nem me notou. Tinha os pequenos olhos azuis inchados, vermelhos e perdidos na inércia de sua dor. Alguém a consolava. E foi então que tudo aconteceu. Pôde-se escutar da sala o velho colchão de mola sendo remexido na cama. Meu avô estava acordando. Da sala já se ouvia o choro incontido: “Meu filho, meu filho…”, ele gritava e chorava.
Aos poucos, meu avô foi se levantando e cada ruído seu era sentido pelo silêncio que se formou em toda casa. Ele calçou um velho chinelo e o mesmo veio se arrastando pelo curto trajeto que era da sua cama até o caixão. Meu avô vestia uma calça listrada, uma camiseta regata branca e trazia na mão esquerda um lenço aberto e usado, que mais parecia uma fronha de travesseiro.
Os passos de meu avô, foram poucos e lentos, mas eu nunca me esqueci. Seu trajeto ficou cravado em minha alma. Gritando ele chegou até o caixão e o abraçou com todo seu corpo e o lenço sujo: “Meu filho, meu filho…”, ele gritava aos prantos.
Meu pai olhou para mim e minha irmã e disse firmemente: “Não chore!”.
Naquele dia eu não senti vontade de chorar, mas entendi o que era um choro de verdade e como uma dor tão grande podia ser sentida de diversas formas. Eu vi isso nos olhos de minha avó, nos gritos do meu avô e na firmeza de meu pai, tendo que se manter forte num momento tão absurdamente dolorido.
Muitos anos depois, em conversas de família, descobri que ninguém tinha as mesmas lembranças que eu. Ninguém havia sentido o momento da mesma forma.
Outro fato bem diferente, me fez perceber que muitas marcas que pensamos ser dos outros, acabam sendo nossas, uma vez que tomamos a dor para nós mesmos.
Há um tempo atrás, meu filho estava lendo o meu primeiro livro, “Minha vida na Alemanha”, sentado ao meu lado. Ele começou a rir e disse: “Eu não me lembrava disso”. “Disso”, que ele se referia, era algo ruim que havia acontecido com ele na história, e que eu descrevia como uma grande dor e sentimento de culpa, que até então eu carregava comigo. E meu filho riu, aliviando minha alma, pois ele não sentia dor alguma em relação àquilo.
E hoje eu me lembrei do meu avô. Do seu chinelo se arrastando pela sala e do seu choro eternizado em meus ouvidos. Porque hoje eu tive que ser firme igual ao meu pai: enquanto ouvia outro choro, tive que conter o meu. E como meu pai naquele velório, eu consegui segurar as minhas lágrimas, apesar delas escorrerem vivas ainda dentro de mim. A dor de um momento de tristeza, daqueles que nunca se queria ter vivido.
Eu sei que este momento eu também nunca mais irei esquecer, porque algumas tristezas ficam eternizadas na alma: num choro, numa frase, numa cena, até mesmo no barulho de um colchão de mola.
Eu só espero que assim como meus pais e minha irmã não lembram a morte de meu tio como eu, o mesmo aconteça com o dia de hoje. Que toda a dor de agora fique impregnada apenas em minha alma. Que um dia esse que chorou, possa rir ao não se lembrar de nada. Que essa dor se torne um fardo só meu. Ele me dói menos se for assim: apenas meu.
Que Deus me conceda a benção de guardar essa dor apenas em mim. Como as palavras de um livro, que essa dor fique escrita apenas em minha alma. E que ninguém mais a possa ler.